2.6.15

O Sistema de Chicago – Parte II

O Espaço Aéreo
Cmte. Paulo Murillo Calazans * (02.06.15)

Tema dos mais controvertidos no direito internacional e, portanto, com reflexos diretos na aviação, o espaço aéreo compõe uma das dimensões espaciais sobre as quais um Estado (país) exerce sua soberania.  Daí, a importância de sua boa compreensão pelos operadores do transporte aéreo, pois é do exercício da soberania que derivam questões como local de matrícula da aeronave, lei aplicável a bordo, regime sobre o alto-mar, controle de tráfego aéreo etc.

Estado é, para tomarmos por empréstimo uma definição do Prof. Paulo Náder, “um complexo político, social e jurídico, que envolve a administração de uma sociedade estabelecida em caráter permanente em um território e dotado de poder autônomo”(1) .

Soberania é o poder supremo de que dispõe o Estado nos limites de seu território.  Mas, a soberania não se confunde com Estado.  É um atributo dele.  No plano interno do Estado, a soberania representa a autoridade máxima (vertical) e incontrastável perante os cidadãos.  É deste poder (concedido pelo povo, nas tradições democráticas; exercido em nome próprio, nas tradições autocráticas) que derivam atos e fatos que afetam nossas vidas todos os dias, como, por exemplo: o poder de polícia do governo, a edição de leis compulsórias pelos poderes legislativos, e as decisões judiciais obrigatórias pelo Judiciário.  E, no plano externo, internacional, ela traduz o poder de autodeterminação de cada povo, que requer relações de igualdade (portanto, horizontais) e cooperação entre os países, isto é, de ausência de superioridade ou submissão entre eles.  E é nesta dimensão de relações de poder que opera a aviação internacional.

Nos seus limites geográficos, ou seja, no seu território, o Estado, e somente ele, pode exercer seu poder supremo(2). O território é uno, mas sua abrangência é tridimensional, compreendendo sua parte terrestre, o mar territorial (se aplicável) e o espaço aéreo.  Este último corresponde à área espacial que cobre os dois primeiros.  De maior interesse, assim, para o propósito desta breve análise, é compreender o que seja mar territorial e o que ocorre fora dos limites deste, já que os limites do espaço aéreo (e, portanto, da autoridade dos Estados) também o acompanham.

Não é na Convenção da ICAO que se encontrará uma norma de direito internacional para a definição precisa de espaço aéreo correspondente ao mar territorial, já que ela só menciona, em seus artigos 1 e 2, a expressão ambígua “águas territoriais adjacentes às áreas terrestres [...]”.  Quem disciplina atualmente esta extensão é a Convenção de Montego Bay, de 1982 , que, em seu art. 3°, afirma o direito do Estado estabelecer seu mar territorial até o limite de 12 milhas de sua costa(4).   

Além das 12 milhas, e até 200 milhas náuticas, estão a zona contígua e a zona econômica exclusiva (ZEE), onde os Estados podem exercer algumas competências(5) exclusivas, mas não sua soberania.  A partir disto, em respeito à aviação, duas questões fundamentais surgem.   Qual o regime do tráfego aéreo dentro ou fora destas 12 milhas?  E como ficam as FIRs, as ADIZs e o espaço aéreo sobre o alto-mar?

No direito marítimo, há uma antiga regra de direito internacional que reconhece a chamada passagem inocente, que é a faculdade de uma embarcação de pavilhão de um Estado transitar pelas águas territoriais de outro.  Este direito contempla, como o nome diz, o inocente tráfego pelo ou para um Estado, dentro do seu mar territorial, mas excluindo qualquer atividade comercial, como a pesca ou extração, e também qualquer propósito militar.

Para o tráfego aéreo, não existe tal direito.  Como já visto no texto anterior (Chicago - I), os direitos de mero trânsito pelo espaço aéreo alheio ou de escala técnica (1ª e 2ª liberdades do ar) requerem a adesão dos países ao IASTA,  e o embarque e desembarque de passageiros e carga (3ª, 4ª e 5ª liberdades) requerem acordos bilaterais de tráfego aéreo negociados (bilateral agreements - BASAs).  Caso contrário, o voo será clandestino(6).

Quanto ao alto-mar, considerado patrimônio comum da humanidade, sobre ele nenhum Estado pode pretender exercer sua soberania ou qualquer tipo de autoridade.  As FIRs que abrangem o alto-mar, portanto, são apenas “administradas” por órgãos ATS (Air Traffic Services) em virtude do sistema convencional geral de Chicago (ICAO).  Portanto, a rigor, um órgão ATS responsável por uma FIR não exerce qualquer autoridade sobre uma aeronave, mas meramente provê serviços de coordenação entre os participantes (mormente, separação de tráfego).  

Todavia, embora nenhum país exerça autoridade no espaço aéreo sobrejacente ao alto-mar, a aplicabilidade das regras-do-ar é direta e imediata, em razão do que dispõe a Convenção de Chicago (artigo 12, cláusula 3). Um ato contrário a uma “instrução” de um tal ATS ou regras gerais de voo implicaria em irregularidade de teor administrativo, eventualmente apurada em face do sistema regulatório de cada país envolvido.  Mas não uma violação à soberania alheia.

Já as ADIZ (Air Defense Identification Zone) são um instituto pouco debatido no direito internacional.  Em geral, recaem sobre o alto-mar e, apesar de não constituírem área sob a soberania deste ou daquele Estado, sua existência é genericamente aceitas pela comunidade internacional, em razão de alegações dos países interessados de que tais áreas são estabelecidas na medida necessária e bastante para assegurar sua segurança interna.  Sua existência pode, de certo modo, ser equiparada à zona contígua do direito marítimo.  Mas a ADIZ se destina tão somente à identificação prévia de tráfego com o propósito de ingresso na nação costeira.  Nenhum aspecto da soberania se estende às ADIZ.

Também por isto, como sabem os pilotos que operam em algumas partes do mundo, é comum que países que fazem fronteira com outros países estabeleçam a exigência de se estabelecer contato com o órgão ATS alguns minutos antes do pretendido ingresso em seu espaço aéreo, em razão da óbvia impossibilidade de se estabelecer uma ADIZ sobre o espaço aéreo alheio.

Por outro lado, também é interessante observar que é incorreto falar-se de extraterritorialidade de leis ou de regime jurídico em quaisquer embarcações ou aeronaves.  Uma aeronave em alto-mar, por exemplo, ao contrário do que comumente se afirma, não é “extensão do território” de origem.  Embora seja um tema complexo, em geral, pode-se dizer que, sendo civis, aplica-se a lei do território sobre o qual se deslocam, caso o país subjacente tenha interesse em fazer valer suas leis, como no caso de crimes praticados a bordo.  Se em alto-mar, aplica-se a lei da bandeira onde se deu o seu registro (matrícula).  Já com isso, por exemplo, é possível a resposta ao sempre interessante tópico do nascimento ou óbito a bordo de aeronaves, quando fora do país de origem.

Também em torno destes assuntos correm as Convenções e Tratados para reprimir atos ilícitos contra a segurança de aviação, e contra as aeronaves e seus ocupantes.  Tema sobre o qual nos ocuparemos na próximo capítulo.

PAULO M. CALAZANS


* -  Comandante de A-310.  Foi piloto nas empresas Varig (B-727, B-744, DC-10, B-767, B-733), Eva Air (MD-11), Ryanair (B-737-800) e atualmente se encontra no Qatar. Possui cerca de 14 mil horas de voo. É advogado e sócio do Escritório Leonardo Lobo Advogados, no Rio de Janeiro.  Bacharel em Direito e Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC/RJ, e Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UCAM/RJ.  Foi professor do Departamento de Direito da PUC/RJ e estagiário concursado no Ministério Público do Trabalho. 46 anos, casado, carioca e tricolor.

Para ler a primeira parte do artigo, cliquei aqui: "O Sistema de Chicago – Parte I:" http://diretodapista.blogspot.com.br/2015/05/o-sistema-de-chicago-parte-i.html


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(1)Introdução ao Estudo do Direito. 22ª. ed.  Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 126
(2)Conforme o antigo brocardo, qui in territorio meo est, etiam meus subditus est (quem está em meu território, é também meu súdito)
(3)UNCLOS - United Nations Convention on the Law of the Sea of 10 December 1982 – ratificada por um expressivo número de países - 166 e mais o Estado da Palestina -, mas registrando-se sua não-ratificação pelos E.U.A.
(4)O termo “costa” aqui é genérico, já que as “linhas-base” a partir das quais se contam as 12 milhas é objeto complexo de estipulação pela Convenção e documentos ancilares.
(5)Competências, de forma simplificada, são parcelas de autoridade.  Nos países de tradição anglo-saxônica, é comum o uso da expressão jurisdiction como sinônimo de autoridade, enquanto, entre nós, jurisdição é apenas a competência relativa ao Poder Judiciário (juris dictio = dizer o direito).  O que vemos comumente traduzido nos filmes como jurisdição (de um distrito policial, por exemplo) é, na verdade, competência ou, se geográfica, circunscrição.
(6)É aqui que se insere o complexo tema do abatimento de aeronaves em voo.

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